ESPOSENDENSES - NA RIBEIRA OU NO MUNDO
O encontro de todos os filhos ou rendidos ao Privilégio da Natureza
“A dor detona o sentimento de amor”
Sergio Antonio Meneghetti
Era véspera de Natal.
A aurora surgira depositando farrapos de inocência nas árvores. Lara encostava o rosto à vidraça deleitando-se com a visão imaculada daquele amanhecer lento que hesitava em despedir-se do silêncio e da tranquilidade nocturna.
A manhã despontava branca e fria como brancos e frios eram os corredores longos e perdidos daquele hospital onde Lara passara os últimos quinze dias.
Embalava nos braços a criança de um ano de vida, só. De rosto fechado, de olhar febril mas seco - esgotara todas as lágrimas durante dias e noites de vigília -, murmurava docemente, envolvendo no seu regaço o corpo lívido da criança, Não chores, filhinho.
Lara queria rezar ainda que soubesse que a oração fosse uma falta de fé. Há muito tempo que abandonara a crença em milagres divinos. Na sua alma somente havia lugar para a acumulação de rancores que se prendiam com vivências e práticas religiosas dum tempo adolescente. Não muito depois sentiria, como feridas abertas, os remorsos nascidos da sua credulidade dilacerarem-lhe a alma.
Hoje, apesar do tempo decorrido, calava-se e, ainda que um grito interior lhe rasgasse as entranhas, não conseguia implorar a misericórdia desse deus que, a crer na educação dos seus progenitores, lhe poderia aplacar o sofrimento neste momento excruciante.
O seu coração endurecera e esta dor recente que não compartilhava com seres divinos, mesmo com familiares, arrastava-a pela vida, talvez num mutismo doentio e… egoísta.
Entretanto, uma aragem de medo e de morte penetrara no quarto como um calafrio; o médico e a enfermeira tinham acabado de entrar, portadores daqueles instrumentos que enchiam o olhar dos dois - mãe e filho - de angústia e de dor, uma dor, tantas vezes, quase insuportável.
- Então, vamos à piquinha desta bela borboleta? - procurava gracejar a enfermeira sorridente de meiguice e comiseração.
A criança olhava. O imenso olhar negro, loucamente aberto, incidia na agulha que avançava sobre as veias ressequidas, após os tão longos e vários tratamentos de quimioterapia. O que se seguiria iria deitar aquela mãe por terra, sentir-se-ia impotente perante o sofrimento que contorceria o corpo do seu filho.
De imediato, trespassam pelas paredes imensamente brancas os gritos da criança. São mais de pavor que de dor ao sentir a ponta fina da “borboleta” penetrar-lhe na veia gasta, onde seria depositado o líquido incolor que, dizia o médico, lhe permitiria sobreviver.
Imprevistamente, arranhando pelas paredes alvas, ouve-se como um eco repercutindo na garganta de uma montanha:
- Deixem o bebé! Deixem o bebé!
Filipe gritava apelando às forças derradeiras. Num quarto próximo, permanecia como uma silhueta arrastando a sua dor. Por companhia antecipada, a morte, essa mão anónima e incompreensível que lhe desfazia a carne e lhe destruía a alma inocente.
Médico e enfermeira entreolharam-se e hesitaram no acto que faziam.
- Deixem o bebé!...Deixem o bebé... - ecoava ainda, já quase inaudível, num gemido último de súplica.
Filipe possuía somente 8 anos de idade. Leucemia galopante, afirmaram os médicos depois de realizados os primeiros exames.
Haviam já decorrido dez longos e intermináveis meses naquele hospital branco, duma brancura sombria, onde o sol desmaiava, implacável, nos dias de Filipe.
“…no 2º ano de escolaridade, tão aplicado, tão meigo…”, comentara um dia a professora que o viera visitar e levara consigo os olhos marejados de lágrimas de revolta contra um deus a quem apelara inconsequentemente.
A mãe, debilitada, encontrava-se internada numa clínica, recuperando duma crise de esgotamento nervoso. Era uma tia, irmã da mãe que, abandonando marido e filhos, percorria passo a passo, minuto a minuto, os dias que restariam a Filipe. Poucos, proferira o médico, o rosto marcado por linhas de apreensão.
Era Inverno. Véspera de Natal, já aqui se disse. Lara acalentava a esperança de poder festejar aquele dia no calor do lar, no seio da ternura apetecida e quanto necessária da família.
- À tardinha, comunicara o médico, logo que passem os vómitos ao bebé. Sim, talvez possam ir passar o Natal a casa.
Passado algum tempo, a mãe, sentindo o breve adormecer do filho, levantou-se da cadeira junto ao seu leito e, pé ante pé, percorreu alguns passos no corredor, gelidamente branco, até ao quarto contíguo.
Filipe sorriu debilmente ao vê-la. E num fio de voz perguntou:
- O bebé já não chora? Não o picam mais hoje?
Lara chegou a si o corpo franzino da criança e, beijando-o com toda a ternura, murmurou:
- Obrigada, Filipe, pelo teu cuidado. E tu, estás melhor, não sofres?
- Já não, Lara, as minhas dores desistiram de mim.
Depois, Filipe fechou lentamente os olhos fundos coroados de manchas arroxeadas e os lábios entreabriram-se para uma última palavra que nunca chegou a proferir.
Lara uivou como uma loba no momento de parir. Nesse mesmo instante, um raio de sol que espreitava pelas persianas corridas daquela morada final, deslizou e pousou no corpo mirrado do menino. Uma luz intensa clareou o espaço à sua volta. E no derradeiro calor dos seus raios, transportou consigo o sofrimento amortalhado naquele corpo de criança.
Lara sentiu esse fio de luz quente penetrar-lhe no corpo e na alma; colocou-o docemente sobre a cama como quem pousa um ramo de frágeis flores e olhou aturdida aquela claridade abandonando o quarto, enfiando-se pelas ranhuras das persianas.
Era Natal. Dos olhos secos de Lara caiu uma lágrima esquecida. Para Filipe chegara o seu último Natal. E com ele a paz que o nascimento lhe sonegara.
Partira. Mas a sua recordação solidária, a sua enorme capacidade de amar esquecendo o seu próprio sofrimento, permanecerá sempre no coração de Lara, como um sorriso de luz translúcida cobrindo de esperança os dias do futuro.
Bernardete Costa
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